Artigo publicado no Anais do III encontro Regional do Rio de Janeiro sobre formação de professores para o Ensino da Arte e II Encontro Nacional de Formação Docente em Artes.
Rio de Janeiro, UFRJ- 2012. p.258 a 264
O presente artigo tem como objetivo relatar o projeto A bordadura na educação básica, desenvolvido no ano de 2012, com uma turma de 2º ano do ensino médio nas aulas de Artes Visuais no Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp/UFRJ). O trabalho realizado com a turma 22 A e teve a boneca como eixo temático e simbólico. Este trabalho foi um desdobramento do projeto de pesquisa que venho desenvolvendo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em espaços de educação não formal e em pesquisas formais e conceituais sobre a bordadura e seus desdobramentos artísticos, estéticos, reflexivos, sociais, contemporâneos e tradicionais. Os alunos do CAp/UFRJ, ao chegarem ao Ensino Médio, têm a possibilidade de optar por uma linguagem artística – Artes Visuais, Música ou Teatro – que será desenvolvida em um projeto que terá a duração de 2 anos. No primeiro ano, os professores apresentam os projetos que serão oferecidos em cada linguagem artística, e a partir daí é feita a escolha pelo aluno. Cada professor desenvolve um projeto comprometido com a pesquisa, experimentação e construção de novas metodologias no ensino de artes. Considerando que cada turma possui 30 alunos, procuramos trabalhar com uma média entre 9 e 12 alunos por disciplina. No ano de 2012, a turma 22 A de Artes Visuais foi composta por 8 moças, de idade entre 16 e 18 anos. Como não havíamos trabalhando com essa turma no ano anterior, resolvemos apresentar às alunas o projeto A bordadura na educação básica e ouvi-las a respeito; afinal, no ano de 2011, essa turma fora regida por uma professora substituta de Artes Visuais que teve seu contrato concluído e não pôde dar continuidade ao projeto de pintura que havia iniciado naquele ano. Porém, a resposta foi imediata: as alunas aprovaram o projeto de bordadura e começamos desenvolvê-lo.
“A Chica vinha passando, com a boneca nem era boneca, era uma mandioquinha enrolada nos trapos, dizia que era filhinha dela, punha até nome, abraçava, dava de mamar…” (ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile.)
O projeto A bordadura na educação básica, no ano de 2012, teve como eixo temático e simbólico a boneca, um artefato da cultura material que está presente em todas as civilizações, ao longo da história da humanidade, e que carrega inúmeros significados simbólicos, místicos, antropológicos e sociais. Um objeto singelo que revela valores e costumes de uma determinada sociedade, não estando apenas ligado ao universo infantil e lúdico. Kishimoto (1994) afirma:
“o fato de a boneca ser um objeto social que permite flagrar múltiplas relações, tanto no âmbito concreto, quanto no imaginário. Por sua configuração antropomórfica, é um dos objetos lúdicos mais apreciados pelas crianças contribuindo para a aproximação do universo infantil e estabelecendo redes de conexão com a história da humanidade, com seus rituais, folclores, religião e com os saberes próprios da comunidade que a apropria. ”
Além do artefato estar presente na história da humanidade, representando diferentes culturas, esse também é um objeto de grande importância na construção simbólica infantil; permite e estimula a representação de diversos aspectos da realidade. No brincar de boneca, a criança imita o mundo, cria e recria inúmeras possibilidades de representação deste.
“A boneca na mão de uma criança é, para esta, um espelho de seu ser e de sua situação evolutiva. A ela recai uma grande importância, pois tudo nela, mesmo o não pensado, tem a atuação que somente se revelará no mundo adulto.” (Scheven Karin)
E ainda que o presente trabalho não tenha sido realizado com crianças, compreendemos que o artefato da boneca, mobiliza mulheres e homens de todas as idades. Na turma 22 A, o tema despertou muita euforia nas meninas-moças, em uma idade de transição bastante importante e confusa, onde o corpo e a mente entram, muitas vezes, em conflito existencial, e há uma crise de identidade na construção desse novo ser, a mulher jovem. De modo que o trabalho com bonecas despertou e promoveu reflexões sobre o corpo feminino, a gestação, a sexualidade, o encontro com o outro e o aspecto lúdico e infantil do objeto. O trabalho foi permeado por diálogos interessantes que promovemos com a arte contemporânea e com a arte popular brasileira. Realizamos pesquisas que tiveram como referência a obra de diversos artistas contemporâneos, como Lia Menna Barreto, Farnese de Andrade, Artur Bispo do Rosário, Leonilson, Louise Bourgeois etc.; artistas que se apropriaram da simbologia do objeto e de suas memórias pessoais para desenvolvimento de suas poéticas de trabalho utilizando como suporte tecidos, linhas, costura e bordados, e que modificaram e deram novo o significado e função para o objeto boneca, transformando-o em uma obra de arte, explorando as formas, a materialidade, a memória e os sentidos que o perpassam. No depoimento de Lia Menna Barreto sobre o uso da boneca, podemos compreender as possibilidades de transfiguração do artefato:
“Eu perverto, sim, o significado das coisas: um brinquedo é um objeto inanimado; eu injeto calor e ele se move, toma vida; eu corto a cabeça dele, e o ar, lá de dentro, é liberado, ganha o espaço”. Complementou: “perverto o significado da boneca quando a retiro do contexto da infância e a trago para o mundo adulto do artista”. (Maria Helena Bernardes, Pele de Boneca, 2010)
Diante dessa lógica de pensamento e construção, fundamentamos nossa construção metodológica, explorando o universo e conceitos presentes na arte contemporânea. De início, procuramos trabalhar com a compreensão e o desenvolvimento dos conceitos: linguagem e poética. A partir da discussão e compreensão dos mesmos e suas implicações na arte contemporânea, foi proposto a cada aluna o desenvolvimento de sua própria poética pessoal, tendo como linguagem a bordadura e a boneca como tema de trabalho e investigação. E procuramos ainda trabalhar com uma metodologia fundamentada em leituras de contos sobre o feminino, a boneca, a leitura de obras de artes contemporâneas e discussões sobre questões sócias e de gênero. Também trabalhamos a memória pessoal e coletiva de cada moça, o brincar de boneca, a feminilidade e a juventude. Essas discussões eram sempre muito interessantes e acaloradas, repletas de questionamentos, dúvidas e descobertas tão importantes nessa faixa etária. À medida que as alunas iam conhecendo novos artistas e compreendendo as respectivas poéticas pessoais, iam construindo suas próprias poéticas e formando os caminhos e escolhas que iam realizando ao longo das aulas. Foi sugerido que cada uma anotasse e produzisse um pequeno diário com suas percepções e observações sobre o tema. Foi muito enriquecedor para as alunas a percepção do deslocamento da função do objeto e do uso da linguagem do bordado na arte contemporânea. Há uma exploração e pesquisa da bordadura na arte atual que nada tem a ver com nossa memória coletiva do bordado tradicional realizado por nossas mães e avós, e que despertou grande interesse na turma.
Comments are disabled